Brasília, junho de 2021
Eu me lembro, sobretudo, do meu pai. Recostado numa cadeira de plástico envergada pelo peso de seu corpo largado para trás. Os pés enterrados na areia. Eu lembro muito bem da noite. Do escuro cindido pelo brilho da lua, emoldurando a silhueta do meu pai empurrando a cadeira de plástico com as costas. As ondas quebravam na areia e quase se esquecia do barulho alto da água sacudida na maré. Eu lembro do cheiro doce do licor de jenipapo, balançando dentro de um copinho daqueles pequenos, feitos para as bebidas que se deve tratar com moderação. Eu olhava o bico que meu pai tinha que fazer para levar a borda do copo até os lábios. E imitava. Esticava a boca para frente, buscando sorver o licor. Eu ria da cara dele, mandando que eu não contasse para minha mãe, como se houvesse de fato alguma possibilidade de ela não perceber a travessura, diante de um filho ainda novo como eu. Meu pai jogava a cabeça para trás, tentando despregar do fundo de seu copo as últimas gotas da bebida, me causando a certeza de que a cadeira se romperia. Depois pegava da areia a garrafa de vidro, arrancava a rolha e servia outra dose.
Eu não lembro das palavras que usamos, nem dos assuntos da conversa que tivemos naquela noite. Mas sei que sou hoje alguém que eu não seria, se não houvesse existido aquela noite ao sabor do álcool e do jenipapo, diante do mar. Não saberia muitas coisas que só sei porque aquela cena me preparou para aprender.
A minha avó começava a colher os jenipapos muito antes do São João. Juntava um tanto numa bacia, aquelas esferas pardas, que mais pareciam bolas de meia suja. Eu sentava à mesa de madeira da cozinha e ficava olhando enquanto ela descascava os frutos com habilidade, movimentos precisos e firmes, depois cortava em pedaços e guardava um vidro, com semente e tudo. Enchia o vidro com cachaça e guardava no armário em cima da pia, para eu não alcançar. Passava mais de mês com aquele vidro lá, macerando a mistura. Todo dia ela pegava a garrafa, dava umas sacudidas e guardava de novo.
Quando dava o tempo, com São João se anunciando, começava a parte que eu mais gostava dessa história. Ia pro fogo uma panela com água e açúcar. Minha avó mexia a colher de pau e repetia sempre que o segredo era não deixar grudar no fundo. Quando aquele xarope começava a ferver, eu chegava a fechar os olhos, para não me distrair do cheiro da cozinha. Ela baixava o fogo e levantava a colher lambuzada para ver o fio de caramelo escorrer de volta para a panela. Quando esfriava um pouco, ela tirava a garrafa com jenipapo do armário e despejava na mesma panela. Ela misturava a calda com o jenipapo e devolvia tudo pro vidro, que voltava pro mesmo lugar do armário para sofrer uma ou duas sacudidelas, todo dia, por mais um monte de dias.
Quando chegava o São João, num mês de junho como hoje, a velha tirava do armário o pote de vidro, coava o licor e enchia a garrafa mais bonita da casa, com babados de fita vermelha colados com cuidado e uma etiqueta bem no meio, para ninguém se dizer desavisado que ali estava o licor famoso da dona Geny. Por tantos anos eu acompanhei o processo de minha avó, sem me dar conta que ela preparava com jenipapo o caminho para eu aprender com ela um monte de coisas, mas também com meu pai outras tantas.
Te conto esta história, meu amigo, para dizer que, se não é com o desenho da tua tinta sobre a minha pele que eu ouço a voz educativa dos ancestrais, se não é com o grafismo geométrico do teu negro que eu respiro a sabedoria, o poder da cura e a proteção dos seres vivos do planeta vivo que é nossa mãe; será sempre com o cheiro doce do licor borbulhando na panela que eu vou estufar o peito, pisar firme na terra e oferecer os nós dos meus dedos em serviço e devoção a minha filha.
Vitor